quinta-feira, 24 de junho de 2010

Poema à boca fechada


José Saramago 1922-2010


Poema à boca fechada

"Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo."


José Saramago

1 comentários:

O Nosso Mundo da Imaginação disse...

Estimados Colegas:
"...Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos..."

Simplesmente, sublime!
Penso que cada vez mais, Saramago passa de incompreendido e enigmático, em minha opinião, para ser capaz de transformar o mundo com o seu versejar de ternura silenciosa quando escreve, dando lugar a um versejar duro, "inconformado" de "revolta" e possuidor de valores e princípios de verdade e autenticidade que o definem e direccionaram para o seu refúgio na Ilha de Lanzarote (Espanha), distante do mundo.
Queria encontrar-se consigo próprio, para depois encontrar-se com o mundo.
Aí teve uma paz duradoira e desejada. Merecida ao seu génio e talento que humildemente eram seus e lhe pertenciam, penso eu.
Com respeito, estima e consideração gigantescas.
Abraço amigo

pena

Bem-Hajam, pela atitude e encanto,
fabulosos Seres Humanos que muito admiro.
Excelente!