quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Lágrimas de Crocodilol



O crocodilo estava com uma grande dor de dentes. Quem lhe acudia?
Dentista, na selva não há. Podia procurá-lo na cidade mais próxima, mas quem lhe garantia que, depois, o deixavam voltar ao rio do seu pachorrento viver?
Os gemidos do crocodilo metiam dó.

Um passarito saltitante aproximou-se, mas não muito, e perguntou-lhe:
- O dente que dói é incisivo, canino ou molar?
O crocodilo não sabia.
- É cá para trás, na queixada - respondeu ele.
- Então é molar e deve estar furado - concluiu o esperto passarinho.

Muito se admirou o crocodilo com a ciência do passarinho. E, numa voz de sofrimento, perguntou-lhe se ele não se importava de tratá-lo.
O passarinho saltitou, hesitante.

Outros passarinhos da família, que andavam por perto, avisaram-no:
- Vê lá no que te metes. O crocodilo pode não ser de confiança...
Mas o passarinho, que tinha bom coração, decidiu arriscar.
- Abre bem a boca - disse ele ao crocodilo.

Saltitando entre os dentes do crocodilo, como sobre um teclado de piano, o passarinho deu com o dente furado. Era, realmente, um dos últimos, já no escuro da boca enorme do crocodilo.
Com muita eficiência, o passarinho brocou, limpou e tapou o buraco do dente magoado.

Só lhe faltava diploma para dentista a sério.
- Abre mais a boca, para eu sair a voar.
Mais o crocodilo a fechava...
Cá fora, os outros passarinhos piaram de susto.
- Tratei-te. Quero sair - exigiu o passarinho e a vozinha dele ecoou na boca cavernosa do crocodilo.

- Palita-me e limpa-me o resto da dentadura - pediu o crocodilo, entre dentes.
Caiu-lhe uma lágrima do olho esquerdo e outra, a seguir, do direito.
- Lágrimas de crocodilo - piaram os passarinhos em bando. - Velhaco. Patife. Hipócrita.

Mas, afinal, estas eram as lágrimas sinceras. O crocodilo sentia-se aliviado e agradecido.
Quando o passarinho, depois de ter feito uma limpeza geral aos dentes do crocodilo, voou para o meio dos outros, foi recebido como um herói.

E, daí em diante, todos os passarinhos saltitantes da beira-rio passaram a frequentar as queixadas dos crocodilos, à cata de restos de comida.
Ganham os crocodilos e ganham os passarinhos. Ao contrário do que consta, na selva também há harmonia.


Autor: António Torrado

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